quinta-feira, 23 de maio de 2019

Contribuição à História Social: Saques, Petrópolis e o 31 de agosto de 1918

 

Contribuição à História Social: Saques, Petrópolis e o 31 de agosto de

1918

Oazinguito Ferreira da Silveira Filho

(publicado pela Tribuna de Petrópolis, 08/10/1983, primeira página do Segundo Caderno)

 

O título acima, saques, pode muito bem demonstrar um acontecimento generalizado aliado à uma data, porém o mesmo se dá a um caso particular ocorrido em Petrópolis, e que de nenhum modo altera o sentido geral da história do país neste período.

Hoje este fato pode ser visto historicamente como um fenômeno social de descontentamento das massas populares em uma determinada sociedade e em determinada época, e que analisado os seus precedentes chega-se a obtenção de mais um elemento essencial à critica histórica do citado período.

É bom frisar que quanto maior a distância temporal de um dado acontecimento e/ou fato social, este pode ser melhor interpretado e analisado historicamente. Haja visto, como exemplo, que os fatos ocorrido durante o presente ano de 1982, saques, violência urbana, tanto em São Paulo como no Rio de Janeiro, podem ser estudados no momento pelo ângulo sociológico que estes fornecem, quanto ao seu caráter histórico só quando for obtida uma relativa distancia temporal dos mesmos, pois caso contrário poderemos incorrer em erros de interpretação e criticismo de sua verdade histórica.

O trabalho ora proposto não pode por si também oferecer uma crítica comportamental histórica, já que o publico a que este trabalho se destina é em sua grande maioria formado por leitos ao assunto. Por isto infundimos à presente característica de uma crônica histórica, procurando dar conhecimento a todos aqueles que juntamente com o autor deste, não alcançaram temporalmente o abordado período, e cientificando de que fatos como os que hoje se sucedem são uma constante no caminhar da humanidade. Também demonstrando que uma sociedade como a petropolitana se apresenta imóvel, e é hoje considerada inerte pelo  atual contexto social vivido, foi outrora turbulenta e expressiva, na proporção em que eram vivenciados os fatos, e na medida em que estes alteravam sua estrutura de vida.

E aqui, como curiosidade da vida socio econômica de Petrópolis, reportemo-nos ao ano de 1918.

A Rebelião Petropolitana

O que foi o 31 de agosto de 1918 para Petrópolis?

Foi pela desenvoltura dos acontecimentos, o reflexo sintomático de uma crise que vinha se estabelecendo no país de há muitos anos. Para ser mais preciso desde a crise internacional de 1913 cujos efeitos se estendem pelos primeiros anos e Guerra, e à qual esteve o Brasil intimamente ligado.

Entre nós o desemprego atingia duramente os trabalhadores, chegando até mesmo a ser criada pelas classes dominantes uma comissão de socorro às pessoas sem quaisquer condições mínimas de sobrevivência, um serio indicador da gravidade – déficit em nossa balança comercial com importações elevadíssimas e queda nos preços dos produtos exportados – emissões inflacionarias para sustentação do café – alta dos produtos alimentícios no mercado internacional. Todo um conjunto de ações que ramificada mente conduziram a uma elevação do custo de vida sem precedentes. Sem contarmos também as várias deflagrações de greves por inúmeros movimentos operários no país, resultado de um processo de conscientização e organização da classe, e demonstrativo da insustentabilidade da situação, o que culminou com espontânea explosão social de 1917.

O ano de 1918 inicia-se sob a mesma influência, não distando o quadro social em nada do anterior.

Petrópolis, por si, apresenta as mesmas consequências, sendo que aqui não poderíamos nominar uma decisiva mobilização operaria durante o período, já que a grande participação de mulheres e crianças no meio operário minava-lhe a resistência, e o paternalismo era por demais nítido. Assim mesmo as greves eram inúmeras e constantes eram os piquetes.

A problemática trabalhista e a opressão no interior de estabelecimentos industriais, como a Cometa e outras indústrias eram frequentemente noticias da imprensa local, vido se juntar a estes o da carestia dos gêneros de primeira necessidade, do açambarcadoríssimo dos mesmos, e o da inescrupulosidade dos comerciantes do município, sendo ambos amplamente debatidos e denunciados nas colunas de jornais.

Tudo conduziu ao clímax. Às vésperas do fatídico “31 de agosto”. O COMERCIO, assumia na integra em sua primeira página o tom de denúncia: “...Já de há muitos dias, vem a greve durando, com todo o seu cortejo de agruras para os pobres tecelões que lá, na riquíssima COMETA, apenas auferem o bastante para não morrerem – e as famílias – à fome”, “... O Governo, o nosso inefável Governo, depois de lançar as massas às legiões de INTENSIFIQUE-SE, cria o nababesco Comissariado da Alimentação, pensando tudo resolver...”.

Este comissariado tinha como objetivo principal o controle e distribuição dos gêneros de primeira necessidade, além da criação de tabelas de preços máximos para a venda e policiamento dos comerciantes e produtores. Em resumo o órgão embrionariamente ministerial e que demonstrou durante seu período de vida, sua escassez de autoridade e fracasso para o fim a que fora criado. Para o citado comissariado fora nomeado o então Presidente interino da Câmara Municipal de Petrópolis, o Dr. Leopoldo Bulhões, que possuía amplo e íntimo relacionamento com as diversas associações de comerciantes.

Como primeira medida durante o mês de junho, o Comissariado manda promulgar em lei uma tabela de preços máximos para a venda de gêneros de primeira necessidade no “combate à carestia”. Suas consequências são por demais catastróficas, pois ela se destina a toda a região onde esta localizada a Capital Federal, excluindo as demais zonas do país em estado de tensão com a questão dos preços. E mesmo nesta, a tabela não é respeitada pelos comerciantes, gerando protestos e tumultos urbanos e ocorrendo a intervenção da policia carioca.

Os meses de julho e agosto transcorrem insustentáveis por todas as regiões. E as frases geradas no interior dos vários estabelecimentos comerciais, eram grafadas pelos jornais:

“ – Qual. Não a cumprimos. Ninguém manda em nossa casa. Eles são mais gatunos que nós.” (O COMERCIO)

O sistemático desprezo dos negociantes, juntamente com o descrédito pelos atos governamentais, acarreta nova onda de protestos e ebulições em vários pontos do país. Sendo em Petrópolis, que o conflito se agrava com maior intensidade.

Pela manhã do dia 31 de agosto, corria à boca pequena que o Armazém de PESTANA & CO. (Grande Refinação de Açúcar Pestana e de Mantimentos, na Avenida XV de Novembro no. 657) embarcaria à tarde para o Rio uma grande partida de açúcar. Esta informação que percorre toda a cidade fomentou verdadeira aglomeração à Estação e proximidades do armazém, o que evita que três vagões repletos de sacos sejam embarcados, pois temerosos os sócios da empresa dão a contraordem.

Neste espaço de tempo, o Prefeito interino e Presidente da Câmara, Coronel Arthur Barbosa ao tomar conhecimento dos fatos, se reúne com a autoridade policial local colocando as forças policiais do município em estado de alerta, ao mesmo tempo que mantem contatos telefônicos com o palácio do Governo do Estado pedindo o auxílio de tropas e de um delegado auxiliar. Também se comunica com o Governo Federal pedindo medidas intervencionistas por intermédio do Comissariado da Alimentação.

Ao cair da noite, aproximadamente às 19 horas, o povo volta a se reunir em vários grupos na Praça D. Pedro, e comenta-se a viva voz os acontecimentos anteriores que são encarados por eles como uma verdadeira vitória. O grupamento popular aumenta, chega a se constituir uma verdadeira massa humana. Os ânimos se exaltam, em uma tentativa de intervir tentando amainar os ânimos, o subdelegado de polícia, Dr. Álvaro de Oliveira, é esfaqueado, ficando gravemente ferido, assim como sua ordenança também, - só que é um tiro que o detém. Este foi o sinal e a população imediatamente inicia seu ataque contra o ARMAZÉM DE SOUZA GOMES & CO. situado na mesma praça (razão comercial da Refinação de Açúcar e Armazém de Mantimentos em Grosso, no. 37/55 da Praça Dom Pedro, onde atualmente localiza-se o Edifício Arcádia) situado na mesma praça. Alguns diziam haver começado o mesmo com o disparo, outras fontes citavam ter sido o ataque espontâneo e o incidente haver ocorrido no transcorrer do assalto. Porém a bem da verdade, é que as portas do vasto armazém são arrombadas, penetrando o povo em seu interior e dando inicio ao saque: “... Eram homens, mulheres e crianças, carregando sacos, latas e caixões que passavam em todas as direções. E era de ver-se gente com a alegria estampada no semblante, suarenta, a deitar os bofes pela boca, conduzindo para casa açúcar, banha, feijão, arroz, ..., uma infinidade de coisas.” (TRIBUNA DE PETRÓPOLIS)

“... a cidade dava a idéia de um imenso formigueiro, pois o povo se munia de gêneros, levava-o a casa e tornava ao local da ação em busca de nova presa...” (DIÁRIO DA MANHÃ)

Como de mais nada restasse nos armazéns de SOUZA GOMES, a faina popular se concentra nos armazéns da CASA PESTANA, arrombando como no primeiro, as portas e se comprimindo no interior do mesmo. A massa humana era estimada em cerca de duas mil pessoas aproximadamente, 10% da população do município.

O comercio ainda ativo, de um modo geral temeroso ante a violência e furor populacional, cerra suas portas e as guarnecem, inclusive aos botequins.                 

A única coisa verificada pelas ruas era o vaivém populacional com o material saqueado entre seus braços. PESTANA & CO., além de saqueado teve seus objetos mobiliários quebrados ante a sanha popular ... Vidros, balcões, tudo isto unido a palavras de ordem contra os açambarcadores.

Uma noite de sábado, onde o tempo era instável e a temperatura fria, mas nada disso abatia a revolta do povo: “... muitos populares chegavam mesmo a transportar esses gêneros em tílburis, carros, carroças e carrinhos de mão...” (DIÁRIO DA MANHÃ)

A tropa policial receosa esperava no interior do quartel a chegada de reforços oriundos da capital do Estado. Estes tardavam, não podendo de imediato serem enviados devido aos protestos de rua em Niterói e ao policiamento ostensivo na Capital.

Os saques se estenderam, chegou a vez do armazém de NICOLAU GOMES & CO., com avidez e exaltação generalizada, jogavam-se os gêneros à rua por intermédio de uma porta arrombada, os quais eram disputadíssimos. Estavam os comerciantes apavorados, os mais inescrupulosos e donos dos maiores armazéns não ousavam nem mesmo aparecer com medo da extensividade dos ataques.

Nem casas de frutas estabelecidas à Avenida XV escaparam ao ataque. Por volta de meia-noite o ARMAZÉM FINKENNAUER, à Rua XIV de julho, teve todo o seu estoque carregado e seu interior destruído. A multidão encaminhou-se a CASA VIEIRA, onde diante da mesma o Dr. Gualberto de Oliveira, falando ao povo, conseguiu dissuadi-lo de invadir aquele estabelecimento. Tomando novo rumo a população se dirigiu às INDÚSTRIAS REUNIDAS de propriedade de Manoel Gomes Amorim. Nesta, o filho de Manoel Gomes, armado do pavilhão nacional súplica ao patriotismo do povo, no que é atendido. Fato este que se repete em mais duas casas comerciais: o BAZAR AMÉRICA e o armazém de Bernardo Meira à Rua Souza Franco. Assim agiam os pequenos comerciantes, tentando evitar o ataque à suas casas, chegando até mesmo a expor suas próprias famílias.

Corriam boatos da extensividade dos saques pelos bairros, de incêndios provocados e inclusive de comunicações cortadas e de trilhos de via férrea retirados para impedir a chegada de tropas. De verdadeiro, somente os assaltos às casas comerciais do bairro do Valparaíso, sendo que, no ARMAZÉM DE CARMINIO VERICHIO, estabeleceu-se forte tiroteio com várias vítimas em estado grave: um homem, duas mulheres e duas crianças.                

Outra pessoa foi ferida a facadas, quando do assalto ao ARMAZÉM DE JOSÉ GOMES na Avenida XV, funcionário de fiscalização do município, que procurava deter os populares.

A uma hora da madrugada, uma relativa volta à normalidade, somente sendo vistos alguns poucos a carregar as sobras espalhadas durante a correria. Às duas da madrugada chega à cidade pela Leopoldina a força requisitada, tendo a essa hora o povo já se recolhido, e restando pouco a fazer pelos recém chegados. Força esta composta de 50 soldados entre infantaria e cavalaria.

Durante os assaltos os tiros de guerra 12 e 302, recrutaram seus atiradores à prestarem guarda nos quarteis para garantir o armamento d munição, sendo posteriormente colocados em estado de alerta e organizados para prestação de guarda ao município em auxilio às forças policiais. Ainda pela madrugada via-se o corre-corre de médicos atendendo aos inúmeros feridos.

De manhã, podiam-se ver os destroços causados pela intensidade da fúria popular. Dá-se início a um sigiloso inquérito policial, enquanto na cidade se realizava um posicionamento ostensivo, além do que, durante este dia e os seguintes, várias prisões de populares são efetuadas, e numerosas mercadorias são apreendidas, em casas residências do centro da cidade e da periferia. Uma incessante chegada de caminhões com mercadorias à Delegacia de Polícia, e lá depositadas sob forte guarda armada na antiga COCHEIRA GARCIA.

Durante toda a semana grupos policiais amparados pela lei de guerra (Decreto no. 3.533, 03/09/1913), e insuflados pelos comerciantes lesados, invadiam as residências pobres, por vezes operárias, na execução da apreensão das mercadorias e prisões, se excedendo às vezes.

As autoridades eram acusadas por conivência com os saques. Vez por outra as mesmas acusavam a existência de agitadores subversivos descontentes com a política do partido situacionista. Os jornais se degladiavam em insultos, muitos procurando culpar o movimento operário local pelo planejamento da operação, o que não é provado. Choviam os telegramas das Associações Comerciais par o Presidente da República e do Estado, chegando os comerciantes a moverem ação contra o Estado, buscando se ressarcirem de suas perdas.

Os jornais cariocas traziam longas manchetes e editais destinados ao episódio e alguns comentando de forma exagerada e maliciosa, enquanto outros, salientando mais detalhes que, por interesse da comunidade, não eram nominados (JORNAL DO COMERCIO e CORREIO DA MANHÃ).

Vez por outra ... novos boatos. Na noite do dia primeiro, noticias de novas tentativas de saque a um armazém no Quarteirão Suisso (Caxambu). A força policial de cavalarianos, lá chegando, encontra-o totalmente às escuras e nada acontecendo é plenamente vaiada pelos moradores.

Não somente Petrópolis fora acometida por tal fenômeno. Durante o período constataram-se ações idênticas em Muriaé e Juiz de Fora, e algumas reações malsucedidas na Capital Federal e na do Estado.

A constatação geral foi a de que: “... O povo não tocou em dinheiro, não arrombou cofres que, com certeza, estavam recheados. Se resumiu simplesmente a saciar sua própria fome com os gêneros encontrados...” (TRIBUNA DE PETRÓPOLIS).

Fato é que, passados quinze dias, a imprensa não dava mais palavras ao acontecido, sendo agora a cidade acuada pelo temor à Gripe Espanhola.

Conclusão:

Tanto no ontem como no hoje é o papel das massas em uma dada rebelião fenômeno representativo de épocas decadentes, onde o grito e a ação são as únicas formas de expressão ante o potente inimigo. Suas características mais destacáveis são, na maioria das vezes, correlacionadas ao problema da fome e do desemprego, não podendo serem ai coligadas ao habitual pregão de “agi”, haja visto a adesão genérica do individuo frente a esses momentos.

Inúmeros são os exemplos históricos, teses e teorias que serviriam e servem a todos aqueles que conquistam o poder, e que podem, em um trabalho sério, evitar o fenômeno.

Bibliografia:

Fontes Primarias:

Impressos: Jornais e revistas Pertencentes a Hemeroteca Pública da Biblioteca Municipal de Petrópolis;

Fontes Secundárias:

Albuquerque, Manoel Mauricio de. Pequena História do Brasil, Editora Paz e Terra, RJ, 1982;

Fróes, Gabriel Kopke, in O Caráter Petropolitano, Biblioteca Municipal, Petrópolis, 1960;

Martins, Ismênia de Lima, Subsídios para a História da Industrialização em Petrópolis – 1850/1930, Centro de Pesquisa de História da UCP, 1983;

Fausto, Boris, Conflito Social na República Oligárquica, Cebrap, São Paulo, 1974;

Álbum Guia da cidade de Petrópolis, 1918.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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